Possíveis aproximações entre o decreto 10.530, que incluía as Unidades Básicas de Saúde (UBS) no Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República (PPI), o programa de privatizações do governo, e a proposta de plebiscito para nova Constituinte gera risco a democracia brasileira. Por Lays Vieira.
Dois temas tomaram espaço no noticiário nacional ao fim de Outubro de 2020: por um lado, houve Bolsonaro e do Ministro Paulo Guedes publicaram o decreto 10.530. O decreto basicamente permitia que o ministério da economia fizesse estudos para incluir as Unidades Básicas de Saúde (UBS) dentro do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) da Presidência da República, que é o programa do governo que trata da realização de privatizações.
Segundo o governo, a intenção seria a promoção de um estudo para determinar a viabilidade de construção, modernização e operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Logo após publicação, o texto despertou preocupação em parlamentares, especialistas e entidades da área, a exemplo das Secretarias Estaduais de Saúde, pesquisadores e o Conselho Nacional de Saúde (CNS). Acusado de ser inconstitucional e com escrita apressada e obscura (por exemplo, qual seria a contrapartida das empresas envolvidas?), o decreto caminha na contramão de uma valorização do SUS. A privatização do Sistema Único de Saúde prejudicaria principalmente a população mais pobre, sem condições de pagar planos de saúde, por exemplo.
Vários projetos de decreto legislativo (PDLs) foram apresentados para sustar os efeitos da iniciativa, a exemplo do PDL 453/20, como informado pela Agência Câmara de Notícias. Via redes sociais, o presidente negou que o decreto tivesse o objetivo de privatizar o SUS e que visava o término de obras e a possibilidade de os usuários buscarem a rede privada com despesas pagas pela União. No último dia 28, Bolsonaro revogou o texto, depois da receptividade negativa.
O SUS é uma conquista advinda do processo de redemocratização, originado na Constituição de 1988. Sua porta de entrada são as Unidades Básicas de Saúde (o popular postinho de saúde), responsável pela saúde preventiva e consultas de rotina de milhões de brasileiros.
Mas ele também realiza procedimentos complexos, oferece atendimento de emergência por meio do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), fornece vacinas e remédios gratuitamente para diversas doenças, como diabetes, HIV e Alzheimer. Financia pesquisas na área de epidemiologia e abriga a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A iniciativa privada já é presente em partes do SUS através da atuação das Organizações Sociais e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. No contexto de pandemia, o SUS se mostrou mais essencial do que nunca.
Por outro lado, um segundo fato que chamou a atenção da mídia e da sociedade civil foi a declaração do deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR), líder do governo na Câmara dos Deputados, no dia 26 de outubro. Na ocasião, ele defendeu a realização de um plebiscito sob o argumento de que a atual Constituição transformou o Brasil em um “país ingovernável”. Pegando carona no exemplo o Chile que, depois de várias manifestações, foi às urnas no dia 25 e definiu que uma nova Assembléia Constituinte deverá ser eleita para a criação de uma nova constituição, substituindo a atual, remanescente da ditadura de Augusto Pinochet.
A ideia inicial do deputado era que o plebiscito fosse feito nas eleições municipais deste ano para em 2022 ter uma Assembléia Constituinte. Barros recebeu críticas de autoridades como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Além disso, a ideia é amplamente rechaçada pela comunidade jurídica, que a entende como inconstitucional. Mas, apesar das críticas, Barros afirma que a repercussão da proposta foi boa, mas não citou nominalmente os apoiadores.
Na esteira do entendimento de “país ingovernável”, soma-se a Barros o ministro Paulo Guedes. No contexto da alta do dólar, batendo a casa dos R$5,80 e a necessidade de atrair investimentos, o ministro vem já há algum tempo afirmando que agenda de reformas encontra barreiras no Congresso, como exemplificado pelas constantes trocas de farpas entre Guedes e Rodrigo Maia.
A “engrenagem política”, acordos e uma suposta “mentalidade cultural equivocada” do Congresso não tem deixado o governo levar em frente a agenda de reformas e privatizações, defende Gudes. No entendimento ultraneoliberal no ministro, isso é o que resolveria os problemas econômicos do país. Segundo ele, como mostrou o podcast Ao Ponto, do jornal O Globo, o presidente Bolsonaro “vem cobrando, mas as ‘engrenagens políticas’ não têm permitido que as privatizações aconteçam”.
Pois bem, caro leitor, o movimento de Bolsonaro revogando o decreto pode ser lido por essa mesma chave: “não consigo mudar o país”, “não consigo modernizar o país” e a culpa é a “engrenagem política”, precisamos muda-la. Barros é aliado do Executivo e muitos dos que ele diz ter apoiado sua fala sobre uma Constituinte acredita-se serem investidores. Nunes Marques, que acabou de tomar posse no STF, muito provavelmente também será um aliado.
O tema perdeu espaço na mídia nesses últimos dias, muito por conta das eleições norte-americanas, mas é preciso ficar atenta(o) aos próximos comentários e jogadas desse xadrez tresloucado. Pois se tal posição realmente estiver sendo construída ela com certeza ganhará o apoio de setores empresariais, da base bolsonarista e do chamado “centrão”. A pergunta que fica é: como seria uma constituição elaborada por esse governo fascista ultraneoliberal? Espero não descobrir a resposta.
Lays Vieira
Publicado em: 07/11/20
De autoria: Lays Vieira
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